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Fernando de Szyszlo e um dos quadros da série Mar de Lurín, na biblioteca de sua casa, em Lima |
A frase é
do pintor Fernando de Szyszlo Valdelomar, um dos mais conhecidos e renomados
artistas peruanos e da vanguarda latino-americana, ao se referir ao desafio do
artista em passar para o quadro a forma sonhada. “Ao tratar de fixar o sonho, o
artista o mata. O sonho morre entre as mãos. Há um descompasso entre o que se
quer fazer e o que se consegue fazer”, diz.
Szyszlo
(pronuncia-se Sislo) nasceu em Lima, no distrito Barranco, em 1925. Filho de um
físico polonês e de mãe peruana. Teve contato desde pequeno com a arte,
sobretudo com a literatura – Szyszlo é sobrinho do poeta peruano Abraham
Valdelomar e cresceu entre os livros e as lembranças de seu tio. Também se
dedica à escultura e é membro da Academia Peruana de Letras.
O artista
teve importante papel no desenvolvimento da pintura abstrata no Peru e na
América Latina. Sua obra sofreu influência do cubismo e da arte pré-colombiana
e está espalhada em museus de vários países. Entre eles, Museu de Arte de Lima,
Museu de Arte Contemporânea de Lima, Museu de Arte Moderna
de Rio de Janeiro, Museu das Américas (Washington), Museu de Arte Moderna do México, Museu Guggenheim de Nova York, Museu de Arte Contemporânea de Seul
(Coréia do Sul).
Aos 89 anos, o pintor
está trabalhando a todo vapor, preparando exposições no México, Estados Unidos,
Colômbia e Peru. Szyszlo me recebeu na biblioteca de sua casa, um de seus
lugares favoritos, em meio aos livros, quadros, esculturas, objetos de arte
pré-colombiana e fotos com velhos amigos, como os escritores peruanos Mario
Vargas Llosa e José María Arguedas. Com simpatia e tranquilidade, o pintor
concedeu a seguinte entrevista ao blog:
O senhor teve ou tem contato com artistas
brasileiros? Teve influência de algum deles?
Szyszlo - Quando morei em Paris (nos anos 50), conheci
um pintor brasileiro de sucesso que se chamava Antonio Bandeira, um pintor abstrato. Em
Paris, também conheci Carlos Scliar. Depois, o crítico de arte Marc Berkowitz,
que escrevia em revistas e jornais no Brasil. Berkowitz organizou uma exposição
minha e de um escultor peruano amigo, Joaquín Roca Rey, no Museu de Arte
Moderna do Rio de Janeiro, em 1951.
Em 1951,
também fomos ao Rio com um grupo que lutava muito pela arquitetura moderna no
Peru. Fomos convidados pelo embaixador Orlando Leite. Nessa época, visitamos
Portinari, Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy - o arquiteto que projetou o Museu
de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Voltei mais tarde para fazer uma exposição
na galeria Bonino, em Copocabana.
Por
relações familiares, também tive contato com o Brasil. Meu cunhado, que era
mexicano, foi embaixador do México no Brasil, na época do presidente João
Goulart. Então, minha irmã vivia no Rio. Faz tempo que não vou ao Brasil.
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O artista autografa para mim o livro "Miradas Furtivas" |
O senhor viveu em outras cidades, como Paris,
Florença e Washington. Como é sua relação com Lima? E do que o senhor mais
sente falta quando está longe de Lima?
Szyszlo – Minha cidade é Lima. Seguramente, quando
estou fora, sinto falta de meus amigos e familiares, da minha casa, do meu
ateliê e biblioteca, meus lugares favoritos. Também não
esqueço de que tenho o mar a um passo de minha casa. Eu nasci em Barranco, junto
ao mar. São lugares muito queridos para mim.
Que mais
poderia dizer-lhe? Quando vivemos em um país subdesenvolvido, adquirimos
vínculos muito fortes com o país, pelo frustrante que pode ser, às vezes, morar
aí. Então, durante muitos anos, fui muito pessimista com o que acontecia em meu
país. Porém, de uns 10, 15 anos para cá, o futuro se abriu e me sinto mais
otimista, mais confiante no Peru. As coisas estão melhorando.
Realmente, em suas últimas entrevistas o senhor
tem se mostrado muito otimista. O que o senhor sonha para seu país?
Szyszlo - Tanta coisa... O Peru é um país que tem um
passado tão importante. Muitas coisas boas podem acontecer aqui. Estão latentes
todas as coisas maravilhosas produzidas no país, como os tecidos de Paracas,
Machu Picchu, a cultura do norte do Peru. Isso demonstra que há uma matéria
humana valiosa que pode lograr muitas coisas.
Além disso,
o povo está mais otimista. Há progresso, sem dúvida. A classe média cresceu
muito. Então, é muito difícil conter esse crescimento. A classe política, por
péssima que seja, não pode conter essa avalanche, os desejos, as intenções, o
trabalho do povo. As pessoas querem evoluir, querem ser felizes, realizar seus
sonhos.
O espaço para arte também cresceu nos últimos
anos?
Szyszlo - Claro. Quando fiz minha primeira exposição,
em 1947, não havia uma só galeria de arte em Lima. Agora, há muitas galerias.
Não havia também nenhum artista que vivia de seu trabalho. Agora, há.
O senhor começou estudando arquitetura na
Universidade Nacional de Engenharia, em 1944, e teve dois filhos arquitetos. Imagino
que o senhor seja muito crítico em relação à arquitetura de Lima, cidade que
passou por crescimento desordenado nos últimos anos.
Szyszlo - Meus dois filhos eram arquitetos. Um morreu
(em 1996, em acidente aéreo); o outro continua trabalhando. Lima está
melhorando, pouco a pouco.
Sabe,
sempre admirei a arquitetura brasileira, Niemeyer, Lúcio Costa, os Irmãos
Roberto, Eduardo Affonso Reidy. E agora há novos arquitetos. O Brasil também
está tendo grande ímpeto. Estive recentemente em Medellín, na Colômbia, onde
preparo uma exposição. Me deu muito gosto saber que o avião em que viajava era
brasileiro, da Embraer.
Como é sua rotina? O senhor pinta todos os
dias?
Szyszlo - Sim, pinto todos os dias, sobretudo porque
tenho compromissos. Em fevereiro, tenho uma exposição em Miami. Em maio, no
México. E em julho, em Lima. Estou cheio de trabalho. No momento, estou
pintando quadros grandes. Gosto dos quadros grandes.
De onde vem sua inspiração?
Szyszlo - A inspiração é uma coisa que está dentro da
gente. São experiências. O crítico de arte inglês Herbert Read dizia que a arte é uma
experiência cristalizada, ou seja, todo o fato de viver é uma experiência, que
é transmissível. Ser artista é ter a compulsão para expressar essa experiência,
comunicá-la, tirá-la da decadência do tempo e torná-la uma coisa palpável que sobreviva
a nós. Claro, é uma ambição, simplesmente. Não é garantido.
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Bonecos pertencentes à arte colonial de Arequipa chamam a atenção na biblioteca do pintor |
Que jovens pintores peruanos se destacam
atualmente?
Szyszlo - Há alguns. Neste momento toda a América
Latina está contaminada pela moda e isso é não é bom para a arte. Em toda
América Latina você vê instalações e quadros que são a negação da pintura. O
pintor não participa em nada. Isso tem rebaixado o nível da arte. Mas não é
somente na América Latina. É em todo o mundo.
Nos
perguntamos por que há baixado tanto o nível da arte? Por que estamos sendo tão
pouco exigentes? Então, temos que nos dar conta de que nossa sociedade se
dessacralizou, perdeu-se o espírito de mistério, do incompreensível, do
inefável. Tudo está sendo banalizado. Não é somente a arte que está se
banalizando, mas também as relações humanas, o amor, o sexo. Quer dizer que
tudo está perdendo peso e se tornando light,
como dizem os ingleses.
Há como retroceder?
Szyszlo - Isso vai passar. O pintor Salvador Dalí
dizia: “moda é o que passa de moda”. Isso é tudo a banalização do mundo, mas
vai mudar. Há épocas na história que são assim. Na França, no século XVIII, a
pintura era muito banal, muito barroca, muito insignificante, não tinha
conteúdo. Fragonard e Boucher, todos esses pintores, que em seu momento foram
tão importantes, já não existem. O tempo
vai decantando o que vale a pena, e o tempo vai ser implacável com o que
passa agora em matéria de arte. É questão de paciência, de ter fé em que o
homem é mais forte que suas circunstâncias, quando são adversas.
O que pensa o senhor sobre a arte contemporânea?
Szyszlo - Penso, como lhe dizia, é banal. Uma pintura
que precisa de um texto ao lado que a explique, quer dizer que não existe.
Agora você vai a uma exposição, vê um quadro ou um objeto, e ao lado há uma
página escrita que diz o que o pintor quis fazer. Se o artista não pode dizer por intermédio de sua pintura, sua obra não
tem importância. Matisse dizia: se você é pintor, corte a língua, porque a
maneira que tem de se comunicar é com a cor.
O senhor é um pintor renomado, reconhecido,
suas obras são valorizadas. O senhor está satisfeito com o que produziu?
Szyszlo – De maneira nenhuma. Fiz um quadro que se
chamava Mar de Lurín. Quando o terminei, me dei conta de que o quadro não era o
que tinha em mente. Então, voltei a tentar de outra forma e, assim, resultaram
30 ou 40 quadros, porque não conseguia tirar o que havia dentro de mim. Havia
conseguido apenas um pedacinho, um fragmento do que queria. A insatisfação com
o trabalho acabado é constante. Nunca me senti satisfeito com um quadro. É um
desafio tão frustrante sempre ficar com um pouco, um pedacinho, um fragmento do
que se queria. A meta sempre está adiante.
Eu sempre
digo, pintar é o homicídio de um sonho.
Ao tratar de fixá-lo, o artista o mata. O sonho morre entre as mãos. Então, o
quadro vem a ser o espólio de uma batalha, não o butim. O que resta deste
combate é o quadro, mas ao final você não conseguiu o butim.
A distância entre o que se imagina e o que se
produz acontece com a literatura também?
Szyszlo - Creio que, guardando as diferenças, isso
acontece com todo artista. Há um descompasso entre o que se quer fazer e o que
se consegue fazer. Talvez isso não tenha ocorrido com certos artistas do Renascimento,
como Leonardo, Tintoretto, Ticiano. Eles tiveram direito de se sentir
satisfeitos com o que faziam. Mas para todos os demais é uma derrota.
O homem do Renascimento era mais seguro...
Szyszlo – Sim. Mais perfeito, mais completo. O homem
acreditava em Deus, acreditava no futuro, na vida eterna. Era um mundo mais
estável. Nosso mundo é um mundo destroçado, fragmentado, em que ninguém tem um
conceito seguro. Vivemos a insegurança, a insatisfação, a frustração. E isso é o
que produzimos em matéria de arte.
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Szyszlo e a autora deste blog. Ao fundo outro quadro da série Mar de Lurín |
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Intihuatana, escultura de Szyszlo em Miraflores, Lima. Intihuatana era um tipo de relógio solar dos incas
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